Religião e Delírio – Contardo Calligaris
Excelente artigo/coluna, do ainda
mais excelente Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo de 26/04.
[]s,
Nypoa
Contardo Calligaris
Delírio
e mau caráter
Cada um é moralmente responsável pela
qualidade da religião que escolhe ou do delírio que ele elabora
1) CONTINUO pensando em Jorge Beltrão
Negromonte da Silveira, o canibal do agreste. Ele tem uma visão do mundo que
justifica sua vida e seus atos.
Com suas duas companheiras, ele era
encarregado de uma missão divina: devia encontrar mulheres perdidas e
purificá-las. Essa purificação passava pelo assassinato e pela ingestão da carne das escolhidas. A visão e a missão de Jorge eram
delirantes, mas o que é um delírio?
O senso comum e a psicopatologia
concordam: delírio é uma convicção inquestionável, incorrigível e muito pouco
plausível. Além disso, um delírio não é apenas um exercício de fantasia, ele
preenche a função (crucial) de dar sentido à existência do indivíduo que
delira.
São poucas as pessoas saudáveis a
ponto de conseguir viver sem se atormentar com a necessidade de resolver, como
se diz, o enigma da vida. Ou seja, são poucas as pessoas para quem a
experiência concreta se justifica por si só, pela alegria de viver. A maioria
precisa recorrer a crenças que digam por que e para o que estamos aqui.
Ora, as crenças que explicam nossa
razão de estar no mundo são todas inverossímeis. Claro, a “missão” canibalesca
de Jorge nos parece mais estranha do que a crença de um cristão, mas isso pouco
tem a ver com a verossimilhança. Como dizer o que é mais provável, que o filho
de Deus tenha sido crucificado para nos redimir ou que Deus nos encoraje a
redimir os pecadores filtrando-os pela nossa digestão? No fundo, a grande
diferença é que as ideias de Jorge são só dele e de suas duas cúmplices,
enquanto as ideias de um cristão são compartilhadas por 2 bilhões de pessoas.
Por mais que seja pouco plausível, uma crença cessa de ser delírio quando ela
se socializa.
A definição de delírio (no “Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais”, DSM-IV) diz que uma pessoa
não pode ser diagnosticada como delirante se sua crença é “normalmente aceita
por outros membros da cultura ou da subcultura dessa pessoa” -”um artigo de fé
religiosa” não pode ser um delírio.
Síntese paradoxal: uma religião
individual é um delírio, e um delírio coletivo deixa de ser delírio e se torna
uma religião.
É um pouco frustrante dispor só de
critérios quantitativos para decidir o que é delirante. Mas talvez a capacidade
de compartilhar uma crença com outros já seja o sinal de uma certa
“normalidade”.
2) Jorge e suas companheiras são
loucos e delirantes. Será que a loucura e o delírio dispensam qualquer juízo
moral? Será que, moralmente, todo delírio se vale?
Não estou convencido disso. Entendo
que a urgência de dar sentido à vida leve alguém a escolher uma religião ou, se
ele não conseguir, a elaborar um delírio próprio. Mas cada um é responsável
pela qualidade da religião que escolhe ou do delírio que ele elabora.
Comparemos religiões. Posso acreditar
que Deus me reconhecerá como seu filho à condição que eu leve uma vida ilibada
e, a cada noite, eu me açoite, no silêncio do meu quarto. Ou, então, posso
acreditar que ele me reconhecerá como filho à condição que eu desmascare,
prenda e execute os pecadores, mundo afora.
Comparemos delírios. Posso acreditar
que Deus quer que eu mude de sexo. Ou posso acreditar que Deus me encarregou de
andar com pinças e bisturi no bolso, para mudar o sexo dos outros.
Conclusão: uma religião ou um delírio
segundo os quais os outros deveriam pagar para que MEU mundo faça sentido são, no mínimo,
provas de mau caráter.
3) Dúvida diagnóstica. Os canibais do
agreste chamaram a atenção da polícia quando usaram o cartão de crédito de uma
das vítimas. Isso era também parte do “ritual de purificação”?
Consideremos ainda uma frase do
memorial de Jorge, descrevendo o fim da primeira das três vítimas: “Eu, Bel e
Jéssica nos alimentamos com a carne do mal, como se fosse um ritual de
purificação, e o resto eu enterro no nosso quintal, cada parte em um lugar
diferente”.
Em tese, um delírio diria que aquilo
ERA, sem sombra de dúvida, o ritual de purificação -nada de “como se fosse”.
Se o tribunal me consultasse como
perito, talvez eu alegasse o estelionato e essa frase para afirmar que Jorge
não é um louco, mas um perverso, que manipulou duas abobadas e deixou alguns
escritos, tudo com a intenção de urdir crimes sinistros e de ser reconhecido (e
assim “desculpado”) como louco.
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