Será a moral religiosa de fato objetiva?
O
argumento religioso
Todas as religiões nos informam sobre
como surgimos e porque vivemos. E imediatamente vem o como devemos viver. E
este último é exatamente o objeto da moral ou ética – tidos como sinônimos em
filosofia. Independentemente das assertivas específicas da religião, ou de suas
decisões de cunho prático ou aplicado (contra ou favor disso ou daquilo), um
dos meta-argumentos mais caros à religião é a idéia de que o método religioso é
o único capaz de emprestar objetividade à moral. Se a moral
não estiver calcada sobre uma perspectiva religiosa, a subjetividade será
inevitável. E sob uma moral assim, subjetivamente sustentada, não haveria como
justificar qualquer noção de bem ou mal, certo ou errado, simplesmente porque
qualquer opinião, por mais esdrúxula que fosse, teria o mesmo status que
qualquer outra. E mesmo que essa opinião absurda fosse flagrantemente percebida
como tal, teremos ainda o problema aparentemente incontornável de como
justificar que tal coisa é de fato absurda. Ou seja, sem algum referencial
externo, como pode-se justificar que o ato de roubar, por exemplo, é errado?
Apenas porque parece fortemente errado? E se alguém disser que matar é correto,
o que será possível fazer além de apenas discordar? A religião aqui parece ter
um ponto, porque de fato, quando intimamente nos perguntamos porque certas
coisas são boas e outras más, ou porque certos atos são certos e outros errados,
tudo parece resumir-se a uma espécie de sensação visceral. Ainda que
dificilmente a falta de uma moral objetiva fosse reverter tanto assim nossos
conceitos e valores morais a ponto de deixar-nos tão soltos e sem noção sobre o
que é certo ou errado, sua falta parece abrir uma porta para que qualquer coisa
passe a ser considerada normal. Estaríamos na situação de tentar obter medidas
das coisas sem a ajuda de instrumentos de medição: algo pode não ser tão
pesado, mas como decidir se aquilo tem meio, um ou dois quilos sem a ajuda de
uma balança? Sem essa objetividade, várias coisas que hoje muito nos afetam
ficariam à deriva e sujeitas a opiniões esdrúxulas. Concorde-se ou nao com os
preceitos morais aplicados da religião, o fato é que, sem a objetividade que ela
pretende fornecer, não temos como decidir, não há como chegar a conlusões se
não temos de onde obter referências. E sem isso, abre-se a possibilidade para
que muito sobre o que hoje temos convicções fortes sobre serem certas ou
erradas, passem, aos poucos, a serem subvertidas ao ponto de vermos absurdos
tornarem-se coisas corriqueiras e banais. Ainda que não se concorde com tudo o
que a religião determina, aqui a religião parece ter um ponto, correto?
Problemas
Não. Há uma série de confusões nesse
discurso, que de fato é falacioso. De início, há um entendimento bastante
distorcido ou simplório sobre o significado objetividade. O problema mais
flagrante e imediato é que a pretensa moral objetiva religiosa simplesmente não afeta em nada a
possibilidade de que opiniões absurdas sejam erguidas e defendidas. Pois se
alguém simplesmente apresentar uma opinião assim, o que a religião ou alguém
que assim pensa, diria? Que é errada porque está em desacordo com os preceitos
ditos objetivos? Ou que simplesmente deve ser descartada por estar
fora do enquadramento objetivo? O problema permece de pé e intacto: segue sendo
perfeitamente possível discordar desses preceitos objetivos, nos mesmos termos em que eu comentei antes.
O
argumento religioso completo
Ocorre que a avaliação isolada da
presunção de objetividade da moral religiosa não contempla o argumento
religioso completo. Antes mesmo de mostrar que essa moral de fato não é
objetiva, ou mesmo que esse argumento de objetividade na forma como a religião
defende é estéril, é preciso trazer à tona os outros aspectos que dão a forma
final e completa do argumento meta-moral religioso, que são o pecado e a
salvação. Quando esses ingredientes são acrescentados à receita, temos então o
prato a ser servido. A presunção de objetividade está toda fundada na noção de
que os preceitos morais religiosos são obtidos e construídos externamente ao
sujeito, apresentados de-fora-para-dentro. Mas isso em si não fornece objetividade, ainda
que a objetividade de fato necessite dessa percepção exteriorizada (falo disso
mais adiante). Para que esse código moral tenha sentido e funcione falta o
fundamental aspecto de motivar a adesão do sujeito a ele. E o que promove essa
adesão não é a constatação em si de que essa moral é pretensamente objetiva e a
única capaz de assim posicionar-se. Mas antes, as noções de pecado e salvação,
exatamente como as noções de crime e castigo no arcabouço legal positivo. O
argumento verdadeiro para a adesão não está em ser a única capaz de
objetividade, mas antes porque caso a rejeitemos incorremos em pecado (crime) e
não obteremos a salvação (castigo).
A algum sujeito que forem
apresentados os preceitos morais reliogiosos, esse sujeito necessariamente
emitirá seu juízo particular (ou subjetivo) . Ou seja, ele concordará ou não
com a regra específica. E tentar argumentar que essa regra deve ser obedecida por serobjetiva, é fugir do assunto. Qualquer resposta
aqui deve justificar a regra em si e o fato de ela ser objetiva, nesse sentido em que a religião concebe
objetividade, nada diz.
Mas é importante explorar mais o viés
religioso sobre objetividade. A exterioridade, que a religião utiliza para conferir objetividade
a seu arcabouço moral, está baseada na percepção cosmológica inerente à
religião. Esse conjunto de preceitos não é tão discricionário, como eu posso
estar dando a entender até aqui. A religião obtém suas regras do que se pode
chamar de Teoria
das Leis Naturais. Trata-se de uma concepção ou
percepção teleológica do mundo, sob a hipótese de que tudo segue um ordenamento
racional, onde cada ato ou fato natural obedece um propósito ou fim. E o ser humano,
dotado da razão, pode e deve observar e identificar esses propósitos, pois
deles emana a intenção divina. O mundo torna-se um sistema ordenado e racional,
onde cada coisa ocupa seu lugar e serve a alguma finalidade particular. O sexos
são separados e atraem-se, pois disso resulta o nascimento de um novo ser (de
onde conclui-se que sexos iguais não devem interagir sexualmente). Há também
uma hierarquia natural, as plantas existem em função dos animais, e estes em
função do ser humano. E as coisas são e funcionam dessa maneira porque foi
assim que o Criador quis. E essas leis naturais, que especificam o que devemos fazer, são as leis
da razão, e somos capazes de entendê-las porque Deus nos fez seres racionais
com capacidade para entender essa ordem. E, portanto, contrariar essa ordem
natural equivale a contrariar os mandamentos de Deus. São Tomás de Aquino foi
quem deu essa forma ao ordenamento divino. E agir contrariamente a isso faz
surgir a figura do pecado, punido com o inferno. Não é à toa que da mesma
maneira que a figura de deus veio sendo sublimada ao longo dos anos, do
original deus ditador e cruel do 1o. Testamento (e que Dawkins tanto gosta de
bater) para um deus vinculado à ordenação do universo e fonte de sabedoria e
bondade, apenas acessível pela revelação. A idéia do inferno também migrou
paralelamente, de uma original fornalha gigante para a noção de caos e
perdição. Não seguir as regras religiosas implica em estar no caos e na
perdição existencial. Pecar é perder-se. É rejeitar o sagrado, explicitado por
meio do ordenamento natural divino.
O
conceito de objetividade
De fato, esse conceito religioso de
objtevidade é distorcido. Objetividade etimologicamente significa o que independe do
sujeito, ou tendência
de julgar pelos fatos sem deixar-se influenciar por seus sentimentos,
prevenções ou predileções (conforme
Michaelis). Esse conceito sugere que é objetivo tudo o que é externo ao
sujeito. E nesse sentido, ao apresentar-se como um conjunto de preceitos
obtidos no exterior do sujeito, é que a moral religiosa apresenta-se como
objetiva. Mas essa definição, assim apresentada, é suspeita. Ainda que
obviamente há a realidade externa ao sujeito, a concepção e o entedimento disso
tudo dá-sa inescapavelmente no sujeito, como sugere o ceticismo Kantiano quando
afirma que não temos como conhecer a coisa-em-si, apenas a coisa-no-sujeito.
Mas o que significa de fato algo que independe do sujeito? Independe em que sentido? Independe, neste contexto significa
que seu entendimento independe de uma possível opinião desse sujeito. E de fato,
há uma série de constatações que parecem irrefutáveis e independentes de alguém
apresentar alguma objeção. O resultado de uma soma, por exemplo. Ainda que
alguém tente apresentar alguma objeção a 3 + 4 resultar 7, qualquer objeção a
isso será ininteligível. Ela só será legítima se for possível apresentar uma
alternativa compreensível, algo que de fato possa ser diferente de 7. Caso
contrário, será uma objeção desonesta.
Objetividade, assim entendida,
significa a convergência de todos os juízos para aquele estado místico da
concordância absoluta. Enquanto atitude, ser objetivo significa um auto-esforço
de depuração no sentido de apresentar alguma opinão o mais isenta possível de
juízos de valor não justificados. Algo como opinar tentando sair de si mesmo e
percebendo algum fato ou coisa de maneira absolutamente impessoal. Quando assim
percebidas, as opiniões sobre essas coisas ou fatos não divergirão.
Mas moral não é matemática, e ainda
que a busca por objetividada na moral seja um aspiração legítima que não deve
ser abandonada, sua obtenção é certamente problemática. Pois, como
aproximadamente afirma Nagel, não há na natureza nada que nos imponha moralmente
em termos de causalidade, nem que nos impeça de simplesmente imaginar em
contrário. Pode-se aceitar perfeitamente que a moral religiosa julque obter na
natureza suas convicções morais, mas isso em si jamais trará qualquer
objetividade por si só. Para que haja objetividade, é necessário que não haja
discordâncias quanto ao que é proposto. E se a discordância não fosse possível,
de fato não seriam necessárias as noções de salvação e pecado.
Hume
e a Faláia Naturalística
Mesmo retirando-se as noções de pecado
e salvação do cenário, o discurso religioso parace fazer sentido. Talvez seja
mesmo uma boa saída adotar em termos de comportamento aquilo que é ou parece
ser natural. Deixando de lado as dificuldades para interpretar
o que a natureza tenta nos dizer, David Hume, aproximadamente 100 anos antes de
Darwin publicar A Origem das Espécies, apontou o salto lógico desse raciocínio,
conhecido por falácia naturalistica (ou, como denomina James Rachels, a Ghilhotina de Hume). Trata-se da confusão aí embutida entre as noções
de ser e de dever ser. Ou seja, da constatação de algo é de uma
determinada maneira, não se segue que esse algo deva necessariamente ser assim.
Do constatação de que os sexos são diferentes e que de sua união dá-se o
surgimento de um novo ser, isso não implica que as coisas devam ser assim
apenas com base nessa constatação. E esse raciocínio pode ser extendido a
virtualmente qualquer constatação natural: do fato de que as coisas
aparentemente funcionem de uma determinada maneira, disso não se segue que elas
devam ser assim sempre.
Conclusão
Talvez mais até do que a teoria da
evolução, a falácia naturalística de Hume foi um golpe mortal no raciocínio
moral religioso. Mais do que nunca, para apresentar consistência interna, o
discurso moral religioso não pode prescindir das noções de pecado e salvação,
sob pena de apresentar um argumento absolutamente estéril. A moral religiosa
não apenas não é objetiva, como ela parece impelir o sujeito a não emitir
juízos subjetivos de valor sobre o que propõe. Como eu já disse em algum lugar,
muito possivelmente estaremos de acordo com muitas das regras e preceitos
aplicados que a religião propõe. Em outros casos, certamente que não. E eu,
particularmente, mesmo concordando com eles, sempre estarei em desacordo com
suas justificativas. Se a moral tem alguma chance de tornar-se mais objetiva,
essa chance passa necessariamente pelos méritos do que é proposto. E jamais por
sua aceitação incondicional justificada com base num argumento que, em sua
essência, é falacioso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário