Psicologia Evolucionista: uma bobagem moral
Quero criticar uma bobagem.
A noção teleológica[1] orignalmente
introduzida por Aristóteles permeou o pensamento científico por séculos. O
Cristianismo, por sua vez, fortaleceu essa concepção. Essa noção de ciência
adequava-se muito bem à percepção da Igreja. Se a natureza manifesta valor e
propósito, isso pode muito facilmente ser associado aos valores e propósitos
divinos. Afinal, de acordo com o Cristianismo, deus criou o mundo e tudo o que há
nele – logo, só era possível esperar-se que tudo o que existe e acontece, está
ali por algum propósito.
Mas essa noção foi sendo gradualmente
substituída à medida em que a ciência foi conhecendo mais sobre a natureza.
Muitos cientistas foram minando essa percepção, sendo que Galileo ocupa um
lugar de destaque. O fato dele ter mostrado que é a Terra que gira em torno do
Sol não foi, em si, a grande subversão. Mas antes, foi o uso de categorias
explicativas que não se encaixavam no modelo teleológico aristotélico.
No entanto, como diz James Rachels,
“Biologia é outra história”. A noção de função quando aplicada a organismos vivos parecia muito
mais sólida. Cada parte de um organismo vivo cumpre um papel, função ou
propósto quanto a manter o organismo vivo. E essa noção era, naturalmente,
extrapolada aos seres vivos como um todo e, em particular, ao ser humano. Até
Darwin aparecer e mudar tudo. Mais do que uma explicação sobre a origem das
espécies, a teoria evolutiva minou de forma irreversível justamente o que era
mais caro à Igreja: o propósito. Segundo Darwin, um designer consciente
simplesmente não participa desse processo.
Mas, francamente, escrever um post
para atacar o criacionismo, ou desing inteligente ou qualquer noção religiosa
dessa natureza tendo como foco a teoria de Darwin é chover no molhado. Essa não
é a bobagem. Minha intenção é abordar alguns desvios ou exageros que surgiram
quase que imediatamente após A
Origem das Espécies ter sido publicado,
e que permeia fortemente isso que eu chamo de ateísmo ingênuo. Tomo como
exemplo disso o artigo “Das Questões Morais”[2].
Que a ciência como um todo vem, ao
longo do tempo, desconstruindo todo o arcabouço religioso, é um fato. Mas isso
não implica em ser a ciência (tipicamente a ciência natural e/ou empírica)
indicada para substituir tudo a que a religião propõe-se. Comedimento é uma
virtude rara (e particularmente presente em Charles Darwin). Sua falta leva a
deslizes e exageros. Talvez exagero não seja o termo mais correto, mas antes,
aquela tentação a ver apenas pregos quando se superestima o valor de um
martelo. Escolhi esse artigo por 2 motivos; primeiro, porque ele erra feio o
alvo em sua intenção original; e segundo, porque ali está endossada essa
tentação de aplicar o
Darwinismo onde Darwin mesmo foi, no mínimo, tremendamente cuidadoso, e que
hoje desbrocha na forma da Psicologia
Evolucionista. Esse artigo, por estar mais para
uma crônica, obriga o leitor a derivar as intenções ou objetivos do autor ao
longo do texto. Mas em qualquer caso, essas intenções são claras. Uma delas – e
que me parece ser a principal ou mesmo única – está em explicar comportamentos
morais tendo por base a teoria evolucionista, em substituição à suposta
explicação religiosa. E já aqui há dois graves erros: a religião não tem como
objetivoexplicar comportamentos
morais, nem a moral, enquanto área de investigação, preocupa-se com esse tipo
de explicação. O segundo problema do artigo nem é tanto do
artigo em si, mas da própria Psocologia Evolucionista, caso ela pretenda tratar
da moral. Mas o artigo, ao assumir essa bandeira, erra novamente. Para
sustentar isso, reproduzo alguns trechos para sustentar o que eu estou
criticando, e este abaixo diz respeito ao errar o alvo:
Em
outras palavras: a própria mentalidade religiosa, na forma como age a fim de
favorecer o desenvolvimento do amor fraterno, revela a mente humana esculpida
através dos tempos pela seleção natural, bem escondidinha por trás do véu negro
da moralidade cristã. E, para quem ainda não entendeu a questão, o fato é que
Deus não tem nada a ver com os nossos louváveis atos de generosidade e
compaixão de uns para com os outros!
A intenção em refutar a moral
religiosa, nesse caso, parace ter-se esquecido do que significa Moral. Moral ou
Ética, que de fato são sinônimos, dizem respeito a como devemos (frisodevemos) viver. A noção de dever fazer está calcada em algo mais fundamental, assume que
quem age por dever tem consciência de que assim o faz. Claro, isso está posto
em termos muito gerais, mas fundamentalmente significa que o sujeito, diante de
alguma situação desse tipo, deve decidir conscientemente sobre seus atos. E a
moral religiosa, por mais que seja o pior caminho para isso, fala exatamente
sobre isso: como devemos viver.
Só que o parágrafo acima fala de algo
muito diferente e em relação ao qual a moral – religiosa ou não – sequer
preocupa-se. É bom lembrar que a moral religiosa é marcadamente escatológica e
calcada na noção de pecado. Por trás disso está justamente o contrário do que é
afirmado no artigo: deus não nos fez altruístas. Nem a priori bons ou maus. Ou
seja, a religião não afirma que nós sejamos naturalmente altruísas, mas antes,
que nós devemos ser altruístas. A religião não diz que nós somos altruístas porque deus assim nos fez. Ela diz que
nós devemos ser altruístas porque deus assim indica (ou
ordena), e isso pressupõe que nós podemos errar, quando então seremos punidos.
Se somos naturalmente ou não, isso é irrelevante. E qualquer crítica à moral
religiosa deve ser feita tendo isso como foco. Tendo como foco todo o arcabouço
religioso no que diz respeito àquilo que devemos ou não fazer e em suas
justificativas para tais atitudes. Fora disso, simplesmente não se estará
falando de moral, muito menos de moral religiosa. Essa intenção no artigo erra
o alvo, aliás, sequer acerta a parede: é oferecida uma explicação onde
nenhuma explicação é pedida.
Esse erro soa bastante caricato
quando é usado como um argumento anti-religioso. É uma espécie de caso
particular, um tanto quanto tosco, de um erro maior, digamos. Esse erro maior a
que eu me refiro é uma suposta tentativa de usar a Psicologia Evolucionista
como argumanto moral. Digo suposta porque a Psicologia Evolucionista em si não
necessariamente tem esse objetivo. Mas a tentação em fazê-lo parece ser grande.
Passo então a falar sobre esse erro
maior.
O artigo cita alguns expoentes
contemporâneos do que se conhece por Psicologia Evolucionista, como Hamilton e Pinker. Hamilton introduziu a
noção de kin
selection, traduzida no criticado artigo por seleção de parentesco. Já Pinker, muito conhecido peloTábula Rasa, defende uma posição que poderia ser assim
livremente definida: se a influência puramente cultural em nossa formação for
0, e se for 10 a influência genética nessa formação, Pinker assume 9. Há mais
autores que embarcam nessa corrente, sendo Herbert Spencer talvez o pioneiro em
tentar aplicar o Darwinismo a questões morais. Mas não quero me deter em nenhum
em particular, mas à idéia, e por isso volto ao artigo ora sob crucifixação. O
trecho a seguir ilustra esse raciocínio:
Ao
que tudo indica, nosso altruísmo, nossa compaixão, dentre outros sentimentos e
atitudes de que somos capazes uns para com os outros, surgiram todos a partir
da evolução de características que, por um lado, por meio do auto-sacrifício de
um em favor de seus parentes, possibilitaram o sucesso reprodutivo genético dos
grupos animais que assim fizeram e fazem, e o insucesso e a extinção dos que
não o fizeram (basta ver a abundância de animais sociais em relação a animais
solitários), enquanto que, por outro lado, somando-se a isso, desenvolvia-se em
nós a estratégia interesseira do altruísmo recíproco (…).
Pois
bem… O altruísmo e a compaixão para com pessoas que encontramos uma única vez
(ou mesmo aquelas cujas tragédias pessoais apenas vemos na televisão), que
logicamente não vão poder retribuir qualquer gesto nosso no futuro, pode ainda
assim funcionar como um comportamento geneticamente programado de
auto-persuasão visando a convencer o próprio altruísta de sua bondade, o que
tornaria mais eficaz sua atitude, no sentido de convencer socialmente os outros
da mesma coisa. O autoengano, como um mecanismo psicológico capaz de nos
convencer de nossa bondade, de nos fazer experimentar verdadeira satisfação num
ato de caridade praticada para com qualquer outro elemento do grupo humano, é
uma adaptação evolutiva complexa, mas surge como uma hipótese um tanto plausível,
que vem sendo defendida por alguns especialistas no campo da Psicologia
Evolucionista.
Aproximadamente 100 anos antes de
Darwin publicar A
Origem das Espécies, David Hume, talvez o mais glorioso
ateu que já existiu, identificou, em Tratise of the Human Nature, essa falácia naturalística, que consiste em
derivar normatizações de fatos (ainda que Hume estivesse referindo-se à um
aspecto da justificativa moral religiosa que não vem ao caso agora). Em outras
palavras, a falácia consiste em confundir ser com dever
ser. Da constatação de algo é de uma
determinada maneira, isso não implica em que esse algo deva ser assim. Da
constatação de que a evolução tenha nos fornecido o altruísmo como
característica, isso nada diz sobre ser o altruísmo algo que devemos seguir ou
praticar. Mas isso é apenas uma das críticas que podem ser oferecidas à
interpretação da Psicologia Evolucionista, ainda que, em se tratando da Moral,
essa seja a mais contundente. Possíveis explicações de natureza evolucionista
para comportamentos são tão relevantes à moral quanto explicações sobre o
pescoço das girafas.
É interessante também perceber onde
esse tipo de racionalização pode levar. Independentemente de a Psicologia
Evolucionista explicar tanto o altruísmo como o estupro, a perspectiva
adotada assume uma espécie de tropismo universal como pano de fundo. Tem-se a
impressão de que todos os atos, ainda que imediatamente motivados por crenças e
desejos, tem como justificativa algo mais fundamental e inconsciente, alheio à
vontade do sujeito – humano ou não – que age. Esse tema mereceria mais
aprofundamento, e quem tiver interesse em ler algo sobre isso, sugiro Created
From Animals – The Moral Implications From Darwinism, de James Rachels[3], que não é
cientista nem psicólogo, é claro.
O Darwinismo tem implicações morais,
e eu vou, num próximo post, falar sobre isso tendo por base o livro acima
citado. E que, é claro, são bem diferentes do que essa interpretação apressada
dos resultados da Psicologia Evolucionista leva a crer, como tão bem
caricaturizada no artigo que eu critiquei nesse post. Nesse sentido, se a
Psicologia Evoluvionista tem alguma pretensão quanto a contribuir com a moral,
então ela ainda não começou a falar sobre o assunto.
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