Nagel e o absurdo da vida – uma defesa
Pretendo aqui fazer uma defesa da posição de Nagel sobre a questão do absurdo da vida[1], motivado por artigo publicado[2], em que são apresentadas objeções a essa posição.
Para tanto, parto das objeções apresentadas, reviso o artigo original frente ao que é objetado e tento defender que a posição de Nagel é sutilmente diferente, mas o bastante para evitar as objeções apresentadas. Dado que esse artigo é uma resposta ao artigo anterior2, que por sua vez baseia-se no artigo original Absurd1 de Nagel, ao leitor interessado sugiro a leitura dos anteriores, partindo do original criticado.
Reproduzo aqui o que me parece ser o início das objeções:
“Mas, utilizando o mesmo gênero de argumentação que Nagel utiliza contra os defensores do absurdo no início de seu ensaio, não é a contingência e a especificidade da vida humana que fazem a vida ser absurda, se for absurda. Se uma vida é absurda quando é contingente e específica, não será uma vida necessariamente absurda se for necessária”?
E, adiante:
“(…) A experiência mental de Luper-Foy nos mostra que o argumento de Nagel não funciona, pois a especificidade e contingência dos nossos objetivos não são elementos necessários para a absurdidade da vida”.
Essa objeção me perece carregar duas confusões: uma, quanto à definição de absurdo que Nagel utiliza; e outra, sobre a perspectiva utilizada por Nagel ao fazer a avaliação. Nagel define absurdo da seguinte forma:
Na vida comum, uma situação é absurda quando inclui alguma discrepância notável entre pretensão ou aspiração e realidade[3]. Nagel dá em seguida alguns exemplos ilustrando isso. É importante não perder de vista que o absurdo nasce a partir da relação entre ação ou fato (realidade) e sua motivação (aspiração ou pretensão). Se a motivação for (aparentemente) discrepante ou inexistente, então a ação ou fato será absurda. Isso rebate a crítica feita acima, sobre ser a vida necessariamente absurda se for necessária. Ora, se a vida fosse necessária, então a vida, nessa estrita relação com o algo que a faz necessária, deixaria de ser absurda. É claro, isso apenas empurra o questionamento um passo adiante, mas então a percepção de absurdo já não é mais em relação à vida em si, mas sobre esse algo que a estaria tornando necessária. Isso remete à questão da regressão, abordada adiante.
Sobre a necessidade de nossos objetivos serem contingentes para que a vida seja tida como absurda, é dito no artigo que motiva minha defesa2, que isso seria um “reductio ad absurdum da sua (de Nagel) tese”. Mas isso me parece não um reductio, mas antes uma circularidade. Pois, uma vez que a constatação de absurdo está fundamentada na impossibilidade de obter-se uma motivação (natural e objetiva) para a vida, caso obtivéssemos essa motivação, então a vida não seria absurda. Algo como dizer que, caso encontrássemos um fim no infinito, então ele deixaria de ser infinito.
É importante lembrar que a noção de absurdo está calcada na discrepância entre ação e motivação. Se a motivação for ausente, qualquer ação será tida como absurda. Num dos exemplos de Nagel, seria como celebrar o aniversário de quem não está de aniversário. Ou, ainda que não seja o caso, se a ação for discrepante de seu motivo, como seguir na direção norte quando o objetivo é atingir o sul. As objeções apresentadas até aqui parecem pretender refutar a tese de Nagel dizendo que, se resolvermos a questão do propósito, a vida não será absurda. Mas isso é óbvio, e em nada refuta o que Nagel diz. Para refutá-lo, seria preciso resolver o problema da impossibilidade de motivação, e aqui entra a questão da regressão. Se nada pode servir como justificativa a menos que isso também seja justificado em algo ulterior, então temos uma regressão ao infinito, e nenhuma cadeia de justificativas será completa. Apenas supor alguma motivação e colocá-la na equação, não faz alterar nada. Seria preciso refutar a impossibilidade de obter-se tal motivação, nos termos em que Nagel sustenta essa impossibilidade.
Cabe então passar ao que é apresentado como sendo outro erro ou problema de Nagel, que caracteriza a segunda confusão que eu mencioinei acima. Textualmente:
“Se de fato a absurdidade da vida humana for apenas o resultado de um conflito entre o nosso reconhecimento da arbitrariedade de nossas preocupações últimas e nossa incapacidade simultânea de abandonar o nosso compromisso com elas, poderíamos alterar o mundo da maneira que desejarmos, mas a vida humana permaneceria absurda. Somente uma alteração da nossa capacidade de autoconsciência (uma propriedade essencial de todo ser humano) pode modificar a absurdidade da vida“2.
Antes mesmo de entrar no mérito, essa suposta solução de Nagel já poderia ser taxada de simplória, na melhor das hipóteses. Uma espécie de solução cabeça de aveztruz, em que o problema é eliminado quando paramos de pensar nele.
É importante contextualizar um pouco a filosofia de Nagel. Um talvez método ou abordagem muito presente em Nagel é a distinção muito forte que ele faz entre o que seriam as visões de primeira e terceira pessoas, ou entre os olhares objetivo e subjetivo. A constatação inescapável de que a vida é absurda dá-se desde um ponto de vista externo, quando alguém olha a vida (incluido a sua) desde as alturas e separado do mundo buscando, no cenário cósmico um motivo para que ela seja vivida por aqueles que estão ali, freneticamente cumprindo suas atividades minúsculas e finitas. Mas esse mesmo observador, ao constatar esse absurdo, percebe-se paradoxalmente cumprindo essas mesmas atividades minúsculas e finitas, e vivendo sua vida absurda, com afinco e seriedade. Sobre o que é apresentado como a suposta solução a esse problema, cabe reproduzir, do artigo original de Nagel:
“Bem, nós não podemos conscientemente negar isso (a percepção externa sobre nossas vidas) pois para isso seria necessário estarmos conscientes do problema que queremos negar“[4].
O que Nagel critica é a importância relativa da constatação de absurdidade, entre as percepções subjetiva e objetivas. A vida pode ser objetivamente absurda, mas não é percebida assim desde o ponto de vista subjetivo ou de primeira pessoa. E essa percepção é necessariamente mais forte, pois caso contrário, a vida entraria em colpaso: “O que nos sustenta, em crenças e ações, é algo mais básico do que isso – pois nós seguimos adiante mesmo conscientes de que as justificativas estão exauridas“[5]. É claro, a pergunta agora poderia então ser feita para essa perspectiva de primeira pessoa, mas acredito que isso fuja ao escopo do artigo de Nagel. Ele explora em profundidade o tema desse contraste entre objetivo e subjetivo em “Visão a Partir de Lugar Nenhum“[6].
Nagel é abertamente ateu e humanista. Num artigo mais recente entitulado “Secular Philosophy and the Religious Temperament“[7], ele coloca uma questão que remete ao tema aqui tratado. A de que a propensão religiosa assume que há uma relação entre a vida de cada um de nós e o universo, seu funcionamento ou motivação. De que há uma relação entre a minha existência e o cosmos, e que o motivo, significado ou sentido da minha existência está em algo maior, ainda que não se saiba com exatidão como isso se dá. O ponto aqui está justamente na hipótese de que haja essa relação. Se essa hipótese for abandonada, a questão torna-se totalmente sem nexo. Não se trata de simplesmente de fechar os olhos para fazer a questão desaparecer, mas antes, de trazer o questionamento um passo atrás e perguntar sobre sua legitimidade. Na questão original aqui tratada, o que Nagel de fato critica é a importância que é dada a constatação de absurdidade, e isso se for concedido que essa questão tem alguma legitimidade quando percebida objetivamente.
Conclusão
Sobre as objeções apresentadas, acredito que a primeira erra o alvo, tratando-se de fato, de uma constatação circular que nada opõe à questão da necessidade da contingência para a absurdidade da vida. Se partirmos da hipótese de que a vida é contingente, então ela será absurda. Mas essa hipótese não foi objetada, apenas foi apresentada a reciproca disso, o que é irrelevante parea a questão.
Sobre a alegada solução que Nagel dá ao problema, ela me parece equivocada. O que Nagel de fato afirma é que o paradoxo, apresentado desde um ponto de vista objetivo, acaba por subestimar demasiadamente o ponto de vista subjetivo, que é onde a vida encontraria seu sentido (intrínseco).
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